“A vontade da arte pode se manifestar em qualquer homem de nossa terra, independente do seu grau meridiano, seja ele papua ou cafuso, brasileiro ou russo, negro ou amarelo, letrado ou iletrado, equilibrado ou desequilibrado“.
Mario Pedrosa
Em todos os tempos, o homem se manifesta pela arte, seja pela necessidade de buscar utensílios para sua vida cotidiana, seja pela necessidade de se comunicar com o outro. E sua manifestação artística revela sua origem, tradição, seu modus vivendi e seu habitat.
Pensar em artesanato é procurar entender a relação do homem com a natureza. E não por acaso o artesanato cria grande satisfação, alegria e identificação com o produto criado. Pensar em artesanato ë se reconhecer na própria existência de 2,5 milhões de anos. É muito tempo!
“Entre o tempo do museu e o tempo acelerado da técnica, o artesanato é a palpitação do tempo humano”
Octávio Paz
De contas em contas o tempo acelerou no século XIX, com a revolução industrial e a mecanização. E os mestres artesãos tão orgulhosos de seus ofícios na Idade Média não faziam mais sentido, diante da linha de produção mecanizada e leis reprimiam o artesanato. Mas surge na Inglaterra, em meados do Séc.XIX, liderado por Willian Morris, o grupo “Arte e Ofícios” em contraponto a mecanização, valorizando o artesão. Hoje com a internet, o tempo não só acelerou ainda mais, como quase deixou de existir na comunicação, e de certo forma também nas distâncias, e os artesãos limitados no passado à visitação in loco, estão acessíveis a qualquer tempo e conquistam visibilidade em rincões pelo mundo afora.
E faz sentido o artesão nesses novos tempos acelerados? O fazer artesanal é do “tempo humano”, dá liberdade e alegria, e é uma alternativa econômica e social. O artesão valorizado acaba por envolver toda a sua família e sua comunidade no ofício. Regiões passam a ser identificadas como referência no artesanato introduzido pelo mestre e se seus aprendizes, com características e identidades próprias.
“As primeiras manifestações artísticas no Brasil, datam de cerca de 100 mil anos, são as pinturas rupestres, encontradas nos anos 70, pela arqueóloga Niéde Guidon, no Piauí, que inspiraram a “Cerâmica da Serra da Capivara” e a criação do “Parque Nacional da Serra da Capivara”, em 1979.
As pinturas rupestres da Serra da Capivara guardam registros da fauna da época (Período Paleolítico), de como os homens se relacionavam no cotidiano, com a natureza, e de como era a espiritualidade desses primeiros ameríndios. Não existe um consenso, entre os historiadores, sobre o que representam de fato as pinturas rupestres. Há vestígios de carvão, que denotam o conhecimento do fogo, e o curioso é que estão em locais de difícil acesso, em paredões íngremes expostas a altas temperaturas, 45ºC.
Já os primeiros objetos feitos pelo homem são da idade de polir a pedra (Neolítico): a cerâmica como utensílio para armazenar e cozer alimentos; a tecelagem das fibras animais e vegetais. O homem passou a se fixar na terra, deixou de ser nômade. Na Ilha de Marajó encontram-se as primeiras cerâmicas do Brasil, uma cerâmica sofisticada, entalhada e em relevo, com desenhos labirínticos, figura antropomorfas, pigmentos vermelho, preto e branco, vestígios desse primeiros ameríndios que denotam uma origem diferente dos índios das outras regiões do Brasil. Icoaraci, a 20 km de Belém do Pará é o centro desse artesanato e Mestre Cardoso (1930-2006) conhecido pelas réplicas desse período histórico. O Museu Goeldi, desde 1866, é passagem obrigatória, para quem visita Belém do Pará.
“Os objetos de artesanato pertecem a um mundo anterior à separação entre o útil e o belo”.
Octávio Paz
Antes da chegada dos portugueses viviam no Brasil cerca de 6 milhões de índios, hoje são cerca de 800 mil. Produziam o necessário para a sobrevivência, e quando a terra não produzia mais, mudavam de habitat. Praticavam a “coivara”, derrubada e queima da mata, prática adotada pelo caboclo e hoje proibida. E alguns estudos identificam que plantavam espécies já domesticas enriquecendo a floresta nativa.
Ainda hoje, nas reservas indígenas, aliam o fazer artesanal às atividades diárias, fiam o buriti, o algodão, confeccionam as redes de dormir, os cestos, os mantos, tipóias para carregar bebes, colares, cocares, canoas, bancos e adornos corporais. E no que fazem imprimem sua arte, seu grafismo, tradições culturais passadas por gerações.
Cada etnia com suas próprias características. Como diz o poeta Octávio Paz, “não existe a separação entre o útil e o belo”, e o indigenista Orlando Villas Bôas completa, para o índio “panela tem que ter pintura, não importa se será queimada e a pintura desfeita”.
Símbolo da fauna brasileira a onça pintada é uma dos animais mais representados pelos índios brasileiros. E corre o risco de extinção.
O Ponto Solidário sempre esteve ao lado do Museu Xingu, um pequeno museu que reúne artefatos coletados na Expedição Roncador Xingu, pelos irmãos Villas Bôas, expedição essa que culminou com a primeira reserva indígena do país, o Parque Indígena do Xingu, homologado em 1961.
Hoje no país, as terras indígenas ocupam cerca de 13% do território e são 428 áreas regularizadas (Funai, 2013). Desde a constituição de 1988, os direitos dos índios foram assegurados e o cartaz na época dizia “Indio e terra, não dá para separar”. E é importante que essas políticas permaneçam, e mais terras sejam regularizadas, para o índio fundamental, e para a fauna, flora, e clima do planeta.
As redes, esteiras e cestos “kunhos” dos índios Mehinako, decorado com cores e grafismos fortes, revelam a alegria de viver desse povo do Alto Xingu.
Tão antigo quanto a cerâmica é a arte de trançar. Segundo a definição de Berta Ribeiro, “essa importante técnica de manufatura, utilizando a mão desarmada ou os dedos em atividade prensil, remonta de 11 mil a.C., e só não é mais antiga que a confecção de cordas, malhas ou filé.”
A riqueza dos trançados, segundo a tradição de cada região, de cada povo, e da diversidade de fibras vegetais, se estende por cada canto desse país. Mas apesar da diversidade e beleza é pouco valorizada como arte, com poucos mestres conhecidos, uma lacuna em aberto. Arriscaríamos dizer que os Mehinako, no Xingu, são mestres nessa arte. A liberdade de expressão e alegria que pulsa está revelada nos grafismos de suas esteiras, redes e cestos “kunhos”. Do talo do Buriti sai a tala, fibra dura, utilizada para cestos e esteiras. E ainda os fios, que enrolados na coxas das mulheres viram corda e novelos para o trançado da rede, que leva cerca de um a dois meses.
“Olê mulé rendeira, olê mulé renda, tu me ensina a fazê renda que eu te ensino a namorá”…
Mulher Rendeira, música de Lampião, o famoso cangaceiro de PE, 1921
Embora os índios já conhecessem o algodão e o fiar, tecendo tipóias e mantos, foi a chegada dos portugueses em 1500 que introduziu uma maior diversidade de rendas e bordados. As primeiras rendeiras surgiram no Nordeste, pelas mãos da mulheres portuguesas. O Nordeste foi a primeira região do País a ser ocupada pelos portugueses.
As riquesas naturais, no começo o pau brasil, atraíram também os franceses, ingleses e os holandeses, que entre 1624 a 1654, formaram colônias dominando todo o litoral de Pernambuco, Rio Grande do Norte, Ceará e o no Maranhão. Em meados de 1500 os portugueses introduziram o negro africano, como escravo para trabalhar nos engenhos de cana de açúcar de Pernambuco e da Bahia. Os índios, apesar te terem sido escravizados e catequizados, eram de outra natureza e foram quase dizimados pela gripe e doenças do branco. Nesses primórdios da colonização, entraram pelo sertão nordestino, índios, negros e portugueses. Desses diferentes povos e culturas, e de suas interfaces e miscigenações, surge o primeiro caldo cultural brasileiro, outras mais influências foram surgindo e enriquecendo esse caldo ao longo da história do Brasil.
“A gravura e a literatura popular nordestina representam um dos mais autênticos trabalhos de criação brasileira”
Ariano Suassuna
A riqueza cultural nordestina é diversificada, da literatura à música, danças, festas populares e personagens marcantes como o cangaceiro Lampião e entre grandes intelectuais, Gilberto Freyre, autor do livro Casa-Grande & Senzala, que demonstra a importância dos escravos para a formação do país e que brancos e negros são absolutamente iguais; e entre muitos outros expoentes da literatura, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Clarice Lispector e Ariano Suassuna.
No nordeste temos grandes mestres, entre muitos que fizeram escola: Mestre Noza (1897- 1984), em Juazeiro, no Ceará; Mestre Vitalino (1909-1963), em Caruaru, em Pernambuco; Mestre Dezinho (1916-2000), no Piauí; e mineiros, Mestre Artur Pereira ( 1920-2003); Mestre Julião (1959-2004), e Dona Isabel (1924-2014) do Vale do Jequitinhonha.
“Artista que não seja bom artesão, não é que não possa ser artista; simplesmente ele não é artista bom. E desde que vá se tornando verdadeiramente artista, é porque concomitantemente está se tornando artesão.”
Mario de Andrade
Com o modernismo, em 1922, houve uma reflexão sobre a cultura original brasileira. “Tupi or not tupi, that is the question”, frase do manifesto Antropofágico. Os modernistas pretendem reafirmar a identidade brasileira resgatando sua dimensão cultural primitiva e ao mesmo tempo conciliando a “floresta e a escola” (Manifesto Pau Brasil) . E não se limitavam ao um plano estético e cultural, avançaram a um forte questionamento político, econômico e social. “Sou um tupi tangendo um alaúde”, dizia Mario de Andrade metaforicamente. Em 1922, nascia ainda Darcy Ribeiro, antropólogo, intelectual, grande defensor das comunidades indígenas e disseminador do conceito da identidade cultural, em sua obra prima “O Povo Brasileiro- a formação e o sentido do Brasil”, de 1995.
O Brasil da diversidade de misturas raciais e credos, curioso e criativo assimila o novo e recria o legado de seus ancestrais. Os saberes, os modos de fazer, as formas de expressão, celebrações, as festas e danças populares, lendas, músicas, costumes e outras tradições, no final do século XX e início do XXI, passam a ser considerados Patrimônio Imaterial da Humanidade pela Unesco, com deliberações a cada dois anos. Hoje já são considerados patrimônios imateriais no Brasil a renda Bilro, a viola de cocho, o ofício das paneleiras de Goiabeiras, entre outras, festas, danças e comidas.